terça-feira, 7 de setembro de 2010

Você escreve, mas ele conserta


Por Lígia Coeli - @ligiacoeli

Cheguei perto daquele homem baixinho e pedi para que ele me mostrasse uma máquina. A descrição era simples: 'quero uma igual a do meu avô'. Sumiu por um instante, se embrenhou por um mundo de letras, parafusos, teclas gastas e maquinetas que ele amontoara ali mesmo, há quarenta anos. 'Quero uma que possua maleta', dizendo isso dificultei a busca. Era o jeito mais urgente para que ele demorasse mais, e eu pudesse ficar parada, observando por mais tempo como aquele senhor moreno faiscava por entre as ferragens. Eu acompanhava tudo com o olhar mais voluptuoso que podia lançar. Era bonito vê-lo daquele jeito, órbitas negras e mãos engilhadas, preocupadas em encontrar o pedido do cliente.

Parecia que seu Carmelindo Ferreira da Silva, de 67 anos, havia estado ali sempre. Caso ele não se mexesse, e a cabeça já um pouco alva denunciasse o roteiro do corpo, era quase impossível encontrar o homem amufambado no pequeno cômodo. Assim era a cena que se repetiu durante toda a minha infância, e permaneceu intacta até hoje: o personagem quase-lenda que se enfiava no cubículo, numa estreita rua do centro de Campina Grande, e consertava as máquinas de escrever.


Vou perguntando os preços das máquinas, uma a uma, tentando fazê-lo perder a paciência. 'Mostra-me uma Hermes Baby, manuscrita, de uma cor laranja, intensa!' e cinco minutos depois ele devolve meu pedido tal qual solicitado, e para mostrar que está funcionando, enfia calmamente o papel por entre os rolos, checa tudo franzindo a venta e fazendo movimentar a armação do óculos. Começa então a mergulhar os dedos na letras, e com barulho de digitação nascida por entre aqueles dedos nodosos, escreve seu próprio nome. Quase aplaudi, mas desisti, a partir de então elegia aquele homem como o único, aqui na cidade, capaz de consertar o que era escrito. Que o diga Lourdes Ramalho. A teatróloga que já escreveu mais de cem peças em sua máquina, só ajeita a teimosa lá: 'é que às vezes emperra'.

Quanto mais machucada chegasse a máquina, melhor. Se não tinha as peças para substituir, ele as inventava com os restos de outras. E não importava o dia da urgência, ele estaria lá. 'Abro em dia de feriado, dia santo e até no domingo'. Eu tento provocar 'Oxe, e tem gente que compra máquina em dia de domingo?'. Ele riu pra mim (ou seria de mim?) e baixou a cabeça diante da minha ingenuidade, com uma humildade serena, que invejei por dias. Como se para matar vontade precisássemos marcar data no calendário!

Paixão antiga, essa dele, que começou quando trabalhava em uma empresa e carregava as máquinas pra cima e pra baixo, mas ainda não consertava. De tanto levar as madames no colo, foi aprendendo como lidar com as mais rebeldes. Até hoje não conseguiu contabilizar quantas já estiveram ali, naquele quarto, mas só de olhar me deu tontura - era um bocado. Perguntei se o pessoal costumava esquecer as máquinas por ali. 'Sim, esquecem, mas eu vendo também'. E vende as certidões de nascimento das máquinas junto. Seu Carmelindo não deixa escapar um detalhe, e se você quer comprar a máquina, guarde um espaço pra ouvir a história. Como um moleque que se põe diante de uma caixa de brinquedos, ele sabe falar com propriedade até de quem abandonou os objetos ali. Crueldade dessa gente só é recompensada com reconhecimento, e aí a ferida num instante cria casquinha.

Pergunto o que eu posso fazer pra não deixar a máquina quebrar: 'olhe, livre ela da poeira e evite bulir. Quem fica bulindo quebra tudo'. Entendi. Mas me diga uma coisa, já existiu alguma máquina que o senhor não conseguiu consertar de jeito nenhum? 'Não. A que vier, eu dou jeito'.


Esse texto faz parte da primeira edição da revista Olhar Cultural. Gostou? então faça o download da revista completa aqui.




















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